Introdução
O presente artigo intentará desenvolver sumariamente duas questões: 1) Quais os principais conteúdos que diferenciam a visão de mundo expressa pelo candomblé quando comparado aos da cultura hegemónica e, 2) Como estes conteúdos se manifestam na concepção de género presente no candomblé.
A partir destas duas questões principais, trataremos de problematizar uma gama de questões pertinentes a este artigo, tais como as dificuldades de se fazer uma crítica à cultura hegemónica, ou ao grande problema de, ao intentarmos uma crítica ao modelo ocidental, não recair nas mesmas estruturas que esse modelo propaga. Ou seja, como não ser ocidental estando no ocidente? Vale ressaltar que as problematizações bem como o desenvolvimento central do trabalho será abordado de maneira sintética e com uma bibliografia restrita. O objectivo é destacar os traços mais importantes da visão de mundo africana, presentes no candomblé, e atentar para as consequências que esta visão de mundo traz à discussão sobre a questão de género.
Por fim, primaremos por tecer algumas considerações críticas em relação às questões abordadas, e indicações de algumas possibilidades de pesquisa a partir desta discussão
I. Os principais conteúdos que diferenciam a visão de mundo expressa pelo candomblé quando comparado com as da cultura hegemónica.
Sabe-se que não é possível falar de uma cultura ocidental assim como não é possível falar de uma cultura africana. Não existe cultura ocidental nem cultura africana. O que existe é uma infinidade de culturas ocidentais ou africanas, das quais, mesmo com o risco de generalizações, é possível identificar alguns traços comuns. O plural ao qual nos remetemos é de extrema importância, pois à medida que fugimos da tentação de ver a África como um todo unitário, e, na medida em que abandonamos a ingénua noção de homogeneidade ocidental, podemos avançar nas reflexões acerca das culturas em questão, considerando não apenas os aspectos geográficos, mas também, e principalmente, os aspectos históricos e sociológicos. Não obstante, cremos ser possível destacar alguns traços ou valores que estruturam uma sociedade. Mas, é preciso insistir neste ponto a fim de não obscurecer a questão: tais características gerais serão abordadas desde uma perspectiva estruturante, isto é, busca-se destacar os elementos que compõem uma certa visão de mundo, sem no entanto pretender que esta visão de mundo seja adoptada por todas as pessoas ou grupos que habitam esta determinada cultura. Assim, apesar de compreender que existe uma grande diferença entre os países da Europa e os países da América do Norte, cremos ser possível identificar elementos estruturantes, criados historicamente, que permeiam tais sociedades; sabemos, entretanto, que no interior dessas sociedades não existe uma homogeneidade de concepções de mundo, por exemplo, há grande diferença entre os povos que vivem no campo e entre os povos urbanos; entre os últimos, há uma diversidade fenomenal de modos de vida diferenciados, porém, todos esses modos de vida, de uma maneira ou de outra, estão “subordinados” a um modelo padrão de cultura, ao qual nos deter a fim de discutirmos sobre o ocidente e sobre a cultura africana presente no candomblé.
Privilegiaremos a tensão que se torna explícita entre a “visão de mundo do candomblé” e a “visão de mundo ocidental”. O candomblé, uma espécie de síntese de alguns valores civilizatórios africanos, ora está em conflito com o modo de vida ocidental, ora o absorve. Este processo, mais concomitante que simultâneo, permite-nos apontar para duas questões: 1) em que medida a visão de mundo inerente ao candomblé é capaz de apontar alternativas para a crise do modelo ocidental, e 2) em que medida o candomblé, ao absorver elementos da cultura ocidental, ao adaptar-se à modernidade dos novos tempos, não perde justamente os elementos estruturais de sua cosmovisão africana.
Segundo Sueli Carneiro e Cristiane Cury
Quando a sociedade capitalista , através das relações sociais de produção que estabelece, reifica o indivíduo, desumanizando suas relações; quando propõe uma visão individualizante de mundo, destituindo núcleos comunitários remanescentes de outros momentos históricos; quando fundamenta uma ciência que tem como função a dessacralização da cultura, forjando seu reino na terra, parece significativo o fato do candomblé se expandir vertiginosamente, levando-nos a crer que este se coloca como uma forma de resistência à fragmentação da existência do homem brasileiro, seja no plano concreto, seja no plano ideal da explicação ontológica.
Podemos afirmar que o candomblé é uma religião de matriz africana porque ele reúne diversos cultos a orixás da África num só panteão, preservando, uma estrutura mítica semelhante aos cultos africanos. Na diáspora dos negros africanos, etnias distintas, sob a hegemonia dos povos yorubás (principalmente), criaram em solo brasileiro o que hoje chamamos de candomblé. Esta religião possui um sistema mítico que contrasta e conflitua com a ordem racionalista e excludente do mundo ocidental.
O sistema mítico do candomblé não é fragmentário nem excludente; é totalitário - no sentido de abranger o ser humano como um todo -, e integrativo. Os mitos, os processos de iniciação, os rituais, enfim, toda a estrutura mítica do candomblé obedece a uma lógica própria, lógica essa que concebe o tempo e o espaço diferentemente de como os concebe o mundo racional, baseado em axiomas científicos, do ocidente. Enquanto o que regula a sociedade capitalista ocidental é o tempo cronológico, tempo medido sempre pela produção do capital, tempo, enfim, sempre capitalizado, no candomblé prevalece o tempo mítico. Enquanto o primeiro é fragmentado e linear o segundo se realiza plenamente dentro de um ciclo que abarca a totalidade do ser humano.
A racionalidade do tempo cronológico reifica o homem, estabelece a perda da identidade, sustenta a particularização e especialização da cultura ocidental. Com efeito, a ciência moderna, ou melhor ainda, desde a filosofia moderna (pelo menos!) o ser humano vê-se esquadrinhado pelos saberes específicos. Surge as ciências humanas, cada qual especializada em compreender uma faceta do sujeito; o sujeito, categoria central no discurso filosófico da modernidade, aparece como uma identidade particularizada, auto determinante e absoluta, no entanto, sempre permanece como um projecto, como um objecto de estudo para as ciências. Ora, podemos rapidamente perceber que na cosmovisão do povo-de-santo, mais que “santificar” a visão de sujeito é “sacralizada” a noção de comunidade; o sujeito, por sua vez, aparece em sua plenitude, individuado, mas não isolado ou reificado; são “partes” do universo, do todo, e como parte do todo, traz em si esta dimensão totalitária, isto é, o indivíduo carrega consigo a compreensão metafísica e ontológica da qual faz parte. Os ritos e preceitos do candomblé lhe dão condição de assumir essa dimensão cosmogônica.
Segundo as autoras citadas, o candomblé recupera o indivíduo em vários aspectos:
1. Inscreve-o numa ordem metafísica, propondo-lhe um ser mitológico indivisível;
2. articula esse ser ontológico, essa singularidade, a um universal expresso por um panteão; promove assim sua elevação espiritual;
3. restitui-lhe sua dimensão natural, pois é estreita a correspondência entre os elementos da mitologia e os elementos da natureza. Portanto, ao inseri-lo nesta mitologia, inscreve-o, ao mesmo tempo, no reino da natureza, recuperando assim a unidade entre homem e natureza;
4. a mitologia, ao referir-se a todas as ações humanas significativas, explica e compreende suas contradições sociais e individuais, propondo caminhos alternativos para sua ação sobre o real;
5. em oposição ao projecto individualista da sociedade global, oferece-lhe uma opção comunitária”Seguindo o estudo de outra autora, Ronilda Ribeiro, dizemos como ela que a noção de pessoa na África Negra, e consequentemente no candomblé, “é tida como resultante da articulação de elementos estritamente individuais herdados e simbólicos. Os elementos herdados o situam na linhagem familiar e clânico enquanto os simbólicos a posicionam no ambiente cósmico, mítico e social”. Essa concepção de pessoa apesar de reconhecer a importância do indivíduo não aparta-o da vida social; pelo contrário, um dos elementos que o compõe é justamente o social, a dimensão colectiva e comunitária de sua existência.
Além da noção de tempo e espaço, e da noção de sujeito existem outros elementos que compõem a cosmovisão de mundo africana assumida pelo candomblé. A questão da ancestralidade, do princípio de senioridade, da palavra, do poder, da integração, da inclusão, da vida comunitária, da pragmática, da inocência, da valorização e integração com a natureza, da bipolaridade dos elementos, da Força Vital, dos ritos funerários e da concepção de morte, da produção etc., são também elementos componentes desta visão de mundo africana, que, entretanto, deverão ser aprofundados em outra pesquisa. Porém, o princípio da unidade dos contrários, que organiza todo esse sistema, merecerá, neste trabalho, uma atenção especial.
A dualidade dos elementos não é negada no candomblé. Pelo contrário, a bipolaridade é assumida. Não existe o “bem” e o “mal”, existem forças, energias, que podem ser manuseadas, tanto negativo como positivamente, ou melhor dizendo, que podem ser manipuladas tanto para a construção como para a destruição. É curioso perceber que nas religiões africanas não deixa de ser comum a existência de divindades duplas, isto é, uma divindade feminina e outra masculina, ambas possuindo o mesmo poder. Essa característica estruturante das religiões africanas chegou ao Brasil através do candomblé, e é por isso que podemos dizer que o princípio da sexualidade estrutura todo o sistema desta religião de matriz africana.
O sistema do candomblé é dialético e interligado. A interdependência é a primeira coisa que se aprende no sistema. Há uma divisão social e sexual do trabalho, mas ninguém é absoluto numa função pois existe a interdependência. Não há um trabalho mais importante que o outro.
Há uma tensão entre os sexos. O candomblé reconhece, mitifica, e assume essa tensão. A mulher não é o equivalente do homem, não é a “costela de Adão” (item 2).
Ora, vimos anteriormente que o ser humano vivendo sob a égide do sistema capitalista, vale dizer, da visão de mundo ocidental, cada vez mais preso nas teias da racionalidade e da consequente fragmentação do mundo, experimenta um vazio existencial, uma vez que seu “eu”, longe de uma dimensão comunitária e de um sistema que lhe dê conta de entender-se como pertencente a uma totalidade, desemboca num certo “desespero” moderno, num mundo desencantado, onde tudo parece dominável, mas que, em verdade, é o sujeito que por tudo é dominado. Diante deste quadro nada promissor apresentado pela cultura ocidental, o candomblé surge para estes indivíduos como uma alternativa não apenas religiosa, mas também política e social, pois o candomblé é um modo de vida.
Isto talvez explique por que cada vez mais existem indivíduos, cuja cultura é originária do ocidente, aproximando-se do candomblé. “Em oposição ao anonimato da vida social moderna, o candomblé propõe uma existência personalizada, nominalizada, propiciando inserção ordem comunitária como resposta específica ao vazio existencial decorrente de sua fragmentação individual no social”
Os problemas que podem ser levantados neste item serão abordados no item 3, sendo que no presente item cremos ter abordado os principais conteúdos que diferenciam a visão de mundo expressa pelo candomblé quando comparado com os da cultura hegemônica.
(Continua no próximo post)